Dia do Gaúcho mobiliza o RS com desfile em Porto Alegre e 236 piquetes no Acampamento Farroupilha

Dia do Gaúcho mobiliza o RS com desfile em Porto Alegre e 236 piquetes no Acampamento Farroupilha

Farroupilha de rua cheia: tradição, memória e uma identidade que segue viva

O mais longo conflito regional da história do Brasil virou motivo de festa, reflexão e reencontro. Neste sábado, 20 de setembro de 2025, o Dia do Gaúcho tomou conta do Rio Grande do Sul com desfile em Porto Alegre, lotação no Acampamento Farroupilha e atividades espalhadas pelo estado. A data marca os 190 anos do início da Revolução Farroupilha (1835–1845), que começou por causa dos impostos sobre o charque e virou símbolo de autonomia, resistência e pertencimento para milhões de pessoas.

Na capital, a orla do Guaíba foi tomada pelo público ao longo da Avenida Edvaldo Pereira Paiva. Do alto do palanque oficial, o governador Eduardo Leite acompanhou o vai e vem de cavaleiros, bandas e viaturas históricas. O desfile principal reuniu mais de 2 mil participantes e, segundo a Brigada Militar, atraiu cerca de 5 mil espectadores. Teve clima de celebração e também de tributo: os 70 anos do programa Grande Rodeio Coringa foram lembrados em várias alas, assim como o centenário do comunicador Darcy Fagundes, duas referências que moldaram o imaginário do campo e da cidade.

A manhã foi dividida em dois blocos. O cívico-militar, com 1.300 integrantes das forças de segurança e 180 veículos entre exemplares históricos e viaturas em serviço; e o tradicionalista, com 550 cavalarianos de entidades de várias regiões do estado, ao lado de prendas e peões representando CTGs e invernadas artísticas. A condução ficou a cargo da comunicadora Ana Claudia Feltrin e do poeta-declamador Odilon Ramos, ao som do grupo Alma Gaudéria, vencedor do concurso do tema musical dos Festejos de 2025. O repertório passeou por milonga, vaneira e toadas que fazem muita gente saber a letra sem olhar o papel.

Quem circulou pelo percurso viu muito mais do que pilcha e cavalo. Famílias com crianças, mate quente na mão, gente com lenço no pescoço — e aquela mistura de couro, churrasco e terra molhada que já virou cheiro de setembro no estado. Em muitos momentos, a plateia interagiu com as comitivas, acenou, tirou foto, registrou os carros de época e a passagem dos símbolos oficiais. A Chama Crioula, acesa no começo dos festejos, serviu como fio condutor das atividades ao longo de setembro.

O esquema de organização também chamou atenção. A Brigada Militar e a EPTC orientaram o tráfego e a travessia de pedestres; equipes de saúde e de apoio acompanharam as provas e a movimentação dos animais; áreas de acessibilidade foram preparadas na orla para cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida. Entidades tradicionalistas reforçaram cuidados com a lida campeira em ambiente urbano — água, descanso e manejo adequado para as montarias —, prática que vem ganhando protocolos mais claros a cada edição.

As homenagens deste ano conectaram passado, rádio e oralidade. O Grande Rodeio Coringa ajudou a levar poesia, humor e causos do interior para quem vivia nas cidades, e Darcy Fagundes virou ponte entre o estúdio e o galpão. Ao lembrar ambos no desfile, os organizadores destacaram a força da comunicação popular na preservação de um repertório que vai de lendas a receitas, de modas de viola a histórias de campanha.

Acampamento lotado, aulas a céu aberto e as muitas camadas da Revolta Farroupilha

Acampamento lotado, aulas a céu aberto e as muitas camadas da Revolta Farroupilha

Se o desfile é a vitrine, o Acampamento Farroupilha é o mergulho. Entre 1º e 21 de setembro, o parque recebe milhões de visitantes em 236 piquetes — espaços de diferentes grupos e entidades que funcionam como pavilhões temáticos. É ali que o churrasco encontra o mate, a prosa divide lugar com oficinas e, de quebra, o público tem contato com cursos, palestras e estudos sobre cultura gaúcha e história do Rio Grande do Sul. O movimento é intenso o dia todo, e as noites costumam ter música ao vivo, danças e rodas de poesia.

Os piquetes viraram pequenas escolas. Tem oficina de encilha, demonstração de preparo de charque, roda de causos, exposição de indumentária, culinária campeira, história do tropeirismo e até momentos de leitura de autores que ajudaram a moldar a identidade regional. Escolas levam turmas para visitas guiadas e, nesse percurso, a gurizada aprende, por exemplo, por que o lenço tem cores diferentes, o que é uma invernada e como nasceu o chimarrão que circula de mão em mão.

É também um espaço de cruzamento de memórias. O historiador Giovanni Mesquita crava o ponto: “A Revolução Farroupilha, que foi um evento muito importante, muito épico, cheio de situações que marcaram profundamente a história do povo gaúcho, acabou se tornando este momento em que o Rio Grande do Sul se encontra consigo mesmo — com sua cultura, sua história e as várias versões de sua história, as várias versões de sua cultura”. Essa ideia de “várias versões” aparece nos debates que ganharam corpo nos últimos anos e seguem firmes em 2025.

Nos painéis e rodas de conversa, pesquisadores e tradicionalistas discutem tanto o épico das batalhas quanto as contradições do período. A tributação do charque que acendeu o estopim, a organização militar dos estancieiros, a proclamação da República Rio-Grandense e, ao fim, a assinatura da Paz de Ponche Verde em 1845 — com anistia e concessões econômicas — aparecem ao lado de temas que pedem leitura crítica, como a economia das charqueadas e a presença de escravizados, a participação de mulheres, afro-gaúchos e povos indígenas nessa história mais ampla.

Esse movimento de reinterpretação não esvazia a festa; ao contrário, amplia o repertório. CTGs passaram a abrir espaço para oficinas de culinária afro-gaúcha, rodas de música guaraní-missioneira e atividades voltadas a contar a trajetória de mulheres nas frentes de batalha e na lida do campo. O resultado é um setembro mais plural, sem perder o sotaque.

A programação oficial, coordenada pela Comissão Estadual dos Festejos Farroupilhas 2025, distribui mais de 190 atividades pelo mapa do estado. Além de Porto Alegre, cidades grandes e pequenas organizam desfiles, cavalgadas, bailes, missas crioula, apresentações artísticas e encontros de poesia. A cada ano, o calendário se ajusta ao que as comunidades pedem — em alguns lugares, a parada é maior; noutros, o foco vai para encontros musicais ou rodas de mate com aula aberta.

Esse circuito move a economia de setembro. Piquetes abastecem fornecedores locais, assadores contratam equipes, o artesanato encontra público, hotéis e restaurantes sentem o impacto do fluxo de visitantes. Transporte por aplicativo e linhas de ônibus especiais ganham reforço, e o comércio de pilchas, cuias e facas artesanais registra boa procura. Nada disso é “extra” à tradição: é parte dela, porque a cultura viva também se mede pelo trabalho que gera.

Outro ponto que cresceu: sustentabilidade. Separação de resíduos, redução de descartáveis, campanhas para uso responsável de fogo e água, e ações solidárias de recolhimento de doações aparecem nos materiais dos piquetes. Em várias áreas, há lixeiras específicas, placas informativas e equipes voluntárias orientando o público. É um ajuste de rota necessário para que a festa siga grande sem deixar rastro maior do que precisa.

Para quem vai visitar, vale anotar algumas dicas simples que fazem diferença: chegue cedo para pegar sombra e circular com calma; leve cuia e garrafa térmica, assim evita fila e desperdício; escolha calçado confortável; e, se for com crianças, procure os espaços que oferecem atividades lúdicas e banheiros acessíveis. O acampamento é grande e, sim, dá para passar o dia inteiro por lá sem repetir atração.

Quer um recorte do que está rolando neste fim de semana? Entre oficinas, shows e atos cívicos, há opções para todos os perfis:

  • Apresentações de invernadas artísticas e grupos de dança com repertório de vaneira, milonga e bugio.
  • Rodas de poesia e declamação com participação de declamadores premiados.
  • Oficinas de lida campeira e demonstrações de encilha e manejo.
  • Degustações e aulas de culinária campeira — do carreteiro ao feijão mexido.

O fio histórico que amarra tudo isso continua claro para quem festeja. Em 1835, estancieiros e lideranças republicanas no sul do país se insurgiram contra a política fiscal do Império, especialmente sobre o charque — base da economia regional. A Guerra dos Farrapos durou dez anos, levou à proclamação da República Rio-Grandense e terminou com a Paz de Ponche Verde, em 1845, selando a reintegração do Rio Grande do Sul ao Brasil com anistia e concessões. O conflito ganhou status de mito fundador, e setembro virou o mês em que essa memória transborda para a rua.

Esse mito, claro, não está congelado. A cada edição dos festejos, ele é revisitado com novas lentes. A presença de jovens em piquetes de estudos, a valorização de comunicadores populares que ensinaram o estado a ouvir a si mesmo, e a combinação de desfile cívico com encontros de saberes mostram como tradição e atualização conseguem andar lado a lado.

No fim do dia, o que se vê é um estado inteiro reconhecendo o próprio rosto. O desfile na orla, as vozes que celebram Darcy Fagundes, as rodas de mate que atravessam gerações, a música que embala passos que não se esquecem — tudo isso explica por que o 20 de setembro segue tão forte. A história é antiga. O jeito de contá-la, não. E é justamente aí que a festa cresce.